terça-feira, 13 de maio de 2008

Diário de Praga - Parte I

A nossa viagem a Praga começou muito antes de apanharmos o avião no dia 24 de Abril de 2007.

Num qualquer dia do mês de Fevereiro e depois de um jantar descansado sob o alto patrocínio de uma garrafa de Trovisco fez-se luz e… et voilá. Após uma longa conversa sobre viagens, experiências e pessoas, demos connosco a pensar que seria visivelmente brilhante acrescentarmos mais alguns créditos à nossa experiência de vida por outras paragens e nem sequer foi preciso passar da primeira possibilidade. Parecia até que já muito antes daquele jantar que estava decidido que o nosso destino seria Praga. Tinha estado lá em 2005 e voltei com a sensação de que tinha sabido a muito pouco e que, conforme vim a descobrir mais tarde, havia ainda muito para descobrir. Já o Daniel, seria a primeira vez por aquelas paragens e nem foi preciso convencê-lo de nada. Era ponto assente que iríamos. No tempo que mediou a decisão e o início da viagem, tirei partido do brilhantismo organizativo do jovem Daniel que, munido de um dos seus 627 cartões de crédito (abençoada 3M), tratou de toda a burocracia que detesto nas viagens: pesquisa e reserva dos bilhetes de avião e do local onde iríamos tentar encontrar uma almofada e um lençol mais ou menos razoáveis. A mim coube-me a árdua tarefa de vasculhar as gavetas das memórias da primeira viagem a Praga, em busca de um mínimo de orientação prévia.

O tempo foi passando e a natural ansiedade foi-se instalando aos poucos. Nas pequenas pausas do dia-a-dia, os pensamentos passavam invariavelmente por uma tentativa de idealização daquilo que nos esperaria durante quase 20 dias longe de Portugal. Uma vontade tantas vezes assumida e que agora estava prestes a concretizar-se. Há já quase 2 anos que andava a sentar à minha mesa os meus demónios interiores e nunca conseguira escapar para muito longe. Esta seria portanto a altura ideal de não só investir numa viagem mas também de atirar tudo para trás das costas durante uns dias, longe de onde tudo acontece. E ninguém melhor do que o Daniel para me acompanhar, até porque vim a descobrir mais tarde que esta viagem também tinha surgido em boa altura para ele.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

Porto, 14 de Setembro de 1982

Até que podiam ser acordes de um qualquer piano sedutor. Podia até ser a voz vibrante de uma guitarra, em afagos de de qualquer coisa. Ou então um cello caliente em quebrantos de maresia. No entanto, eram, tão só, um violino e uma gaivota nos céus do Porto. Do outro lado da cidade, sempre junto ao rio, uma janela aberta à luz do sol debruçava-se sobre os telhados ocres do casario que se amontoava numa cascata sanjoanina de cores e de sombras. E um parapeito de madeira, gasto pelos Invernos, esperava a música das tuas mãos, como diria o velho poeta...Por vezes, a gaivota não aparecia e o céu ficava menos azul. Outras tantas vezes, as quatro cordas do violino calavam-se e a cidade perdia-se no labirinto gritante e eufórico de si mesma. Só um vento árido reinava nesses dias, vindo de Leste - quando não chegava de Oeste - e apossava-se das almas apressadas. E era vê-las ainda mais em fuga, então... Ainda mais perdidas...Chegavas sempre à mesma hora, nos últimos meses, àquele parapeito gasto de madeira. Chegavas à hora mágica do entardecer, quando o céu do Porto se enternecia nos braços, já saudosos, do sol e a cidade tonalizava-se de fogo e de púrpura... Chegavas sempre à mesma hora e, com os gestos decalcados da primeira vez, abrias as portadas da janela de par em par e deixavas entrar a luz, em tons de despedida, do sol... Por fim, pousavas as tuas mãos, suaves, no parapeito gasto de madeira... À espera... O violino repousava no colo dela, sobre o vestido azul pincelado do entardecer que, teimosamente, entrava pelos vidros da janela fechada. O arco pendia da sua mão direita, em pose de abandono, quase tocando o chão e ela, de olhos fechados, escutava. A gaivota também.Naquele parapeito gasto de madeira, poderias ter criado um hábito se eu não vislumbrasse na música das tuas mãos um crescendo de ternura, um crescendo de sentires. Mesmo que a cada entardecer que passava a noite viesse mais depressa e o silêncio fosse cada vez maior.Uma lágrima de saudade deslizou pela face dela e as mãos tentaram apertar mais forte o violino. O arco tombou no chão, sem barulho, sem ressentimentos... Só a gaivota notou aquela mudança de cenário, naquele pequeno mundo de cores e de sombras, de música e de silêncios... Só a gaivota voltou o olhar para a cadeira de baloiço sob as cores do entardecer, já tingidas de noite também, para o violino, em repouso, sobre o azul do vestido, para aquele rosto estranhamente fechado, estranhamente enternecido, onde mais lágrimas deslizavam sem um vislumbre de dor. Só a gaivota notou as mãos abandonadas... Do outro lado da cidade, sempre junto ao rio, um parapeito gasto de madeira sentia a música das tuas mãos... Aquela música feita dos silêncios e sussurros da tua pele na minha... A música dos teus olhos deitados nos meus, da tua boca, doce..., na minha... Sorri... Também tu fechaste os olhos. Inspiraste o ar anoitecido da cidade e esperavas que o silêncio se apagasse... Podiam ser acordes de um piano sedutor. Podia ser a voz rouca de uma guitarra, em afagos de fogo. Podia ser um cello caliente em quebrantos de maresia. Era tão só um violino e uma gaivota no parapeito de uma janela fechada. A noite chegara. A gaivota não podia esperar mais. Levantou voo e atravessou os céus da cidade, rasando o casario disposto em cascatas sanjoaninas. Sempre junto ao rio. Atrás de si, os acordes de um violino teciam uma ponte até ao outro lado da cidade e tocaram de música as tuas mãos. A gaivota sobrevoou aquela outra janela, aberta, de parapeito gasto de madeira e não parou. Mais uma vez, não parou... Os acordes de um violino impregnavam os céus de música mas a gaivota não parou naquele parapeito gasto de madeira!... E os meus olhos azuis, onde querias adormecer uma e outra vez, continuavam fechados e desvaneciam-se no rasto de uma gaivota que tecia pontes de música nos céus do Porto, ao anoitecer...Alguém acendeu a luz. A noite tinha chegado. Alguém parou o gira-discos e o silêncio inundou o quarto. Ela abriu os olhos. Eram de um azul claro, com tons de água... O violino continuava no regaço e o arco no chão... Procuravam algo, os olhos... Outros olhos, talvez?... E onde estava o arco dela?...Fechaste a janela ao silêncio que regressava e com a minha música nas tuas mãos, suaves, foste dormir. Os acordes do meu violino tinham-se apagado, uma outra vez... Para sempre?... Pareciam perguntar as velhas paredes do casario... Não. Enquanto aquela gaivota tecesse pontes de música nos céus do Porto, ao anoitecer, aquele parapeito iria sentir a minha música, os acordes do meu violino, nas tuas mãos... E talvez ela um dia parasse naquele parapeito gasto de madeira e trouxesse no olhar, os meus olhos azuis...

Amélia

E nem tudo o que brilha é...petróleo, não? Ouro, ouro...

Após uma intensa busca por Santa Apolónia e arredores, encontramos o caderno de Amélia quase por acaso. Lemos, relemos e voltamos a ler e a reler, na ânsia de percebermos o que fazer dele. Chegamos à conclusão de que o melhor tributo que algum dia poderíamos prestar a Amélia seria o de partilharmos neste espaço alguns dos seus desabafos. Passando um pouco para fora de todo este espectro metafórico que envolve Amélia e a sua triste história, foi esta a forma por nós encontrada de vos mostrar-mos algumas histórias ou contos, se preferirem. Estas histórias ou contos não têm nada de auto-biográfico. São, apenas e tão só, um imaginário criado a partir da história de Amélia contada por Jorge Palma. Sobressai um imaginário regressivo, uma vez que a história contada por Jorge Palma representa as últimas páginas escritas. A nós, cabe-nos contar (ou imaginar) o que está para trás..........Como poderão verificar, Amélia era um misto de várias faces de várias mulheres. Talvez consigamos encontrá-la algures entre Santa Apolónia e o outro lado do Mundo, depois deste complexo exercício de descodificação da sua triste história. Uma coisa temos a certeza: é algures pelo lado errado da noite.

p.s - Um dia vou apanhar todas as palavras que escrevi desde que peguei pela primeira vez em papel e numa caneta. Junto-as dentro de um barril velho e ponho-o a rebolar por uma rua abaixo até que se desfaça numa parede de mercearia. E desprovido de qualquer coisa, fujo para não ser apanhado. Quem quiser que as leve, arrume ou varra para a valeta. Depois, estou uns tempos sem passar por ali, não vá alguém ter-me visto...