Até que podiam ser acordes de um qualquer piano sedutor. Podia até ser a voz vibrante de uma guitarra, em afagos de de qualquer coisa. Ou então um cello caliente em quebrantos de maresia. No entanto, eram, tão só, um violino e uma gaivota nos céus do Porto. Do outro lado da cidade, sempre junto ao rio, uma janela aberta à luz do sol debruçava-se sobre os telhados ocres do casario que se amontoava numa cascata sanjoanina de cores e de sombras. E um parapeito de madeira, gasto pelos Invernos, esperava a música das tuas mãos, como diria o velho poeta...Por vezes, a gaivota não aparecia e o céu ficava menos azul. Outras tantas vezes, as quatro cordas do violino calavam-se e a cidade perdia-se no labirinto gritante e eufórico de si mesma. Só um vento árido reinava nesses dias, vindo de Leste - quando não chegava de Oeste - e apossava-se das almas apressadas. E era vê-las ainda mais em fuga, então... Ainda mais perdidas...Chegavas sempre à mesma hora, nos últimos meses, àquele parapeito gasto de madeira. Chegavas à hora mágica do entardecer, quando o céu do Porto se enternecia nos braços, já saudosos, do sol e a cidade tonalizava-se de fogo e de púrpura... Chegavas sempre à mesma hora e, com os gestos decalcados da primeira vez, abrias as portadas da janela de par em par e deixavas entrar a luz, em tons de despedida, do sol... Por fim, pousavas as tuas mãos, suaves, no parapeito gasto de madeira... À espera... O violino repousava no colo dela, sobre o vestido azul pincelado do entardecer que, teimosamente, entrava pelos vidros da janela fechada. O arco pendia da sua mão direita, em pose de abandono, quase tocando o chão e ela, de olhos fechados, escutava. A gaivota também.Naquele parapeito gasto de madeira, poderias ter criado um hábito se eu não vislumbrasse na música das tuas mãos um crescendo de ternura, um crescendo de sentires. Mesmo que a cada entardecer que passava a noite viesse mais depressa e o silêncio fosse cada vez maior.Uma lágrima de saudade deslizou pela face dela e as mãos tentaram apertar mais forte o violino. O arco tombou no chão, sem barulho, sem ressentimentos... Só a gaivota notou aquela mudança de cenário, naquele pequeno mundo de cores e de sombras, de música e de silêncios... Só a gaivota voltou o olhar para a cadeira de baloiço sob as cores do entardecer, já tingidas de noite também, para o violino, em repouso, sobre o azul do vestido, para aquele rosto estranhamente fechado, estranhamente enternecido, onde mais lágrimas deslizavam sem um vislumbre de dor. Só a gaivota notou as mãos abandonadas... Do outro lado da cidade, sempre junto ao rio, um parapeito gasto de madeira sentia a música das tuas mãos... Aquela música feita dos silêncios e sussurros da tua pele na minha... A música dos teus olhos deitados nos meus, da tua boca, doce..., na minha... Sorri... Também tu fechaste os olhos. Inspiraste o ar anoitecido da cidade e esperavas que o silêncio se apagasse... Podiam ser acordes de um piano sedutor. Podia ser a voz rouca de uma guitarra, em afagos de fogo. Podia ser um cello caliente em quebrantos de maresia. Era tão só um violino e uma gaivota no parapeito de uma janela fechada. A noite chegara. A gaivota não podia esperar mais. Levantou voo e atravessou os céus da cidade, rasando o casario disposto em cascatas sanjoaninas. Sempre junto ao rio. Atrás de si, os acordes de um violino teciam uma ponte até ao outro lado da cidade e tocaram de música as tuas mãos. A gaivota sobrevoou aquela outra janela, aberta, de parapeito gasto de madeira e não parou. Mais uma vez, não parou... Os acordes de um violino impregnavam os céus de música mas a gaivota não parou naquele parapeito gasto de madeira!... E os meus olhos azuis, onde querias adormecer uma e outra vez, continuavam fechados e desvaneciam-se no rasto de uma gaivota que tecia pontes de música nos céus do Porto, ao anoitecer...Alguém acendeu a luz. A noite tinha chegado. Alguém parou o gira-discos e o silêncio inundou o quarto. Ela abriu os olhos. Eram de um azul claro, com tons de água... O violino continuava no regaço e o arco no chão... Procuravam algo, os olhos... Outros olhos, talvez?... E onde estava o arco dela?...Fechaste a janela ao silêncio que regressava e com a minha música nas tuas mãos, suaves, foste dormir. Os acordes do meu violino tinham-se apagado, uma outra vez... Para sempre?... Pareciam perguntar as velhas paredes do casario... Não. Enquanto aquela gaivota tecesse pontes de música nos céus do Porto, ao anoitecer, aquele parapeito iria sentir a minha música, os acordes do meu violino, nas tuas mãos... E talvez ela um dia parasse naquele parapeito gasto de madeira e trouxesse no olhar, os meus olhos azuis...
Amélia